"Dias melhores pressupõem a observância irrestrita à ordem jurídico-normativa, especialmente à constitucional."
"Em época de crise, impõe-se observar princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana."
"Urge restabelecer a segurança jurídica, proclamar comezinha regra, segundo a qual, em Direito, o meio justifica o fim, mas não o inverso."
Jornal GGN - A liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello, nesta quarta (19), no âmbito de uma ação movida pelo PCdoB contra prisões em segunda instância, é um verdadeiro chacoalhão nos colegas de Supremo Tribunal Federal.
Na decisão - que alcança o ex-presidente Lula com a liberdade, já demandada ao Juízo da execução penal pela defesa em Curitiba - Mello escreveu, mais de uma vez, que vivemos tempos tão "estranhos" que se faz necessário mandar fazer o óbvio: cumprir a Constituição.
"Não vivêssemos tempos estranhos, o pleito soaria extravagante, sem propósito; mas, infelizmente, a pertinência do requerido na inicial surge inafastável."
O "requerido", no caso, é o pedido do PCdoB para que a Corte se manifeste a respeito do artigo 258 do Código Penal, que dita situações em que cabe a prisão preventiva. Tirando as exceções, a todos deveria ser garantido o direito constitucional à presunção de inocência e acesso à última instância em apelações.
Hoje o Supremo entende que a execução antecipada de pena é possível a partir de condenação em segunda instância, quando o decreto de prisão estiver fundamentado. O entendimento não é, contudo, vinculante, ou seja, a execução antecipada ou provisória não é automática ou obrigatória.
A questão toda é polêmica porque, de um lado, tribunais de todo o País têm executado o entendimento como se fosse algo automático e, de outro lado, já existe uma maioria virtual no Supremo pronta para mudar essa jurisprudência.
Essa maioria virtual ficou explícita, inclusive, no julgamento de um dos recursos de Lula no STF, quando a ministra Rosa Weber acabou sendo a incoerente "fiel da balança" ao votar contra o ex-presidente, mas deixando claro que se a discussão fosse apenas sobre a constitucionalidade da prisão em segunda instância, ela votaria de outra forma.
Lembrando desse julgamento - notoriamente marcado por pressão de parcela da imprensa que opera como cão de guarda da Lava Jato - Marco Aurélio tentou chamar os colegas de Supremo - "a última trincheira da Cidadania, se é que continua sendo" - à razão:
"Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República! Que cada qual faça a sua parte, com desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca da segurança jurídica. Esta pressupõe a supremacia não de maioria eventual – conforme a composição do Tribunal –, mas da Constituição Federal, que a todos, indistintamente, submete, inclusive o Supremo, seu guarda maior. Em época de crise, impõe-se observar princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana."
Marco Aurélio ainda frisou que, quando assumiu o Supremo, há 28 anos, prometeu servir ao que diz a Constituição, e não a maiorias de ocasião.
O ministro ainda criticou o fato de que "em vez de [ser] incisivo na tutela de princípio tão caro ao Estado Democrático de Direito [o direito de recorrer à última instância em liberdade], o Supremo vem viabilizando a livre condução do processo persecutório por instâncias inferiores, despedindo-se de papel fundamental." Processos que não estão, portanto, sob o controle do Supremo.
Marco Aurélio é relator de duas ações que foram empurradas com a barriga pela ex-presidente da Corte, Cármen Lúcia, ao longo de 2018, e que tratam justamente da prisão em segunda instância.
Dias Toffoli assumiu o Supremo e esperou a eleição presidencial acabar - com Lula fora dela - para agendar o julgamento das ações: 10 de abril de 2019. A data foi divulgada anteontem. Marco Aurélio demonstrou, no despacho assinado nesta terça (19), contrariedade.
"(...) tem-se [na ação movida pelo PCdoB] a necessidade de nova análise do tema em processo objetivo, com efeitos vinculantes e eficácia geral, preenchendo o vazio jurisdicional produzido pela demora em levar-se a julgamento definitivo as ações declaratórias de constitucionalidade, há muito devidamente aparelhadas e liberadas para inclusão na pauta dirigida do Pleno."
Segundo o ministro, o mérito da ação do PCdoB toca num assunto que não atinge apenas condenados por crimes de "colarinho branco", ao contrário do que pensa a opinião pública, mas inúmeros outros presos por acusações de toda sorte. "Se essa temática não for urgente, desconheço outra que o seja."
Como a ação do PCdoB tem identidade "com relação às ações declaratórias [ADCs] de nº 43 e 44, de minha relatoria", justifica-se a "distribuição desta ação por prevenção, conforme disposto no artigo 77-B do Regimento Interno do Supremo" a Marco Aurélio.
No mérito, o ministro defendeu que o artigo 5º da Constituição Federal, onde versa que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", "não abre campo a controvérsias semânticas".
"A Constituição Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em virtude de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da pena, que não admite a forma provisória."
"A exceção", explicou, "corre à conta de situações individualizadas nas quais se possa concluir pela aplicação do artigo 312 do Código de Processo Penal e, portanto, pelo cabimento da prisão preventiva."
ORDEM JURÍDICA
Para Marco Aurélio, o "quadro de delinquências de toda ordem, de escândalos no campo administrativo, a revelar corrupção inimaginável, apenas conduz à marcha processual segura, observados os ditames constitucionais e legais."
Ao Supremo, "responsável pela higidez da Constituição Federal", cumpre "restabelecer a segurança jurídica, proclamar comezinha regra, segundo a qual, em Direito, o meio justifica o fim, mas não o inverso", sob o risco de ver desmandos em instâncias inferiores.
Nesta semana, quando anunciou o calendário de julgamentos de 2019, Toffoli disse que era necessário pacificar o País. Na liminar, Marco Aurélio parece ter respondido ao defesa de dias melhores feito pelo presidente da Corte:
"Dias melhores pressupõem a observância irrestrita à ordem jurídico-normativa, especialmente à constitucional. É esse o preço que se paga ao viver em Estado Democrático de Direito, não sendo demasia relembrar Rui Barbosa quando, recém-proclamada a República, no ano de 1892, ressaltou: 'Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação'."
Ao final, o ministro derrubou prisões em segunda instância exceto em casos de presos que representam riscos à sociedade e outras situações extremas previstas no Código Penal. E se colocou à disposição para relatar e votar, no plenário do Supremo, a presente ação. Mas em 2019, quando o Supremo retorna do recesso.
Por hora, disse Marco Aurélio à imprensa, a decisão proferida na liminar deve ser cumprida imediatamente, como um teste do valor do Supremo e da solidez da nossa democracia nesses "tempos estranhos". A menos, é claro, que venha a ser cassada pelos pares.
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